Crítica | Moonlight: Sob a Luz do Luar (2016), de Barry Jenkins

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Avaliação: 4.5/5

Ano passado, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, responsável pelo Oscar, foi acusada de “embranquecer” os indicados e ignorar os profissionais de outras raças na premiação. Esse ano, filmes sobre negros figuram entre várias categorias, especialmente as de Melhor Filme e Melhor Documentário. Alguns consideram um pedido de desculpas e até pode ser, mas boa parte dos indicados que discutem questões negras merecem ser lembrados pela relevância de suas abordagens.

É o caso de “Moonlight: Sob a Luz do Luar”, que chamou atenção no Festival de Toronto e agora é um dos favoritos à estatueta. Todo o elenco é composto por atores negros sob o comando de Barry Jenkins, um diretor negro, a partir de uma peça teatral escrita por Tarell McCraney, também negro. O olhar que se coloca na obra, portanto, é o de profissionais que representam afro-americanos que ainda enfrentam a discriminação. Colocar suas vozes na maior vitrine da indústria cinematográfica, o Oscar, é fundamental para que haja diálogo sobre os assuntos que ainda são considerados “minorias” e que muita gente, inclusive o mercado, finge que não existe.

Desculpa velada ou não da Academia, a presença de “Moonlight: Sob a Luz do Luar” entre os favoritos desse ano não é justificada apenas pela cor. A obra é uma experiência pura de cinema, com uma precisão narrativa que mergulha em camadas sociais, econômicas, comportamentais e íntimas. A trama se passa em três fases distintas de um garoto periférico introspectivo, cuja ausência paterna e negligência da mãe drogada o transformam em um sobrevivente do meio onde vive.

Na primeira fase, Little (Alex R. Hibbert) é alvo constante de bullying, sendo chamado de “bicha” pelos colegas. Ainda que não faça ideia do que o termo signifique, a fragilidade de Little chama a atenção de Juan (Mahershala Ali), o chefe do tráfico da região. Ao contrário do que se pode esperar da criação de um personagem estigmatizado, Ali traz humanidade a Juan ao se sentir responsável pelo garoto, quase parte da sua família. Quando vira adolescente, Little adota seu verdadeiro nome, Chiron (Ashton Sanders), e sua introspecção dá espaço, aos poucos, a uma raiva contida. A discriminação que sofre entre os seus semelhantes cresce de forma proporcional à sua raiva que atinge.

A relação com a mãe viciada (Naomie Harris) é outro peso que ele precisa lidar. Sem apoio dentro e fora de casa, o jovem busca compreender, da forma que pode, os motivos para uma sociedade tão opressora. Ao contrário de Ali, Harris opta por uma personificação clichê da mãe drogada, mas sua potência em cena é tão forte que a atriz mergulha em questões afetivas familiares que sempre interferem na vida do jovem.

Na terceira fase, Chiron se transforma em Black (Trevante Rhodes), agora o chefe do tráfico local. Antes um garoto franzino com medo do mundo, agora Black parece tentar responder ao sofrimento que passou com uma nova persona, mesmo que a doçura e o silêncio de seu olhar permaneça. Rhodes faz um excelente trabalho de composição, acumulando as experiências das duas fases anteriores na parte mais relevante da história.

O que conecta as três fases é a busca do protagonista por autoconhecimento e como ele se transforma. Muito além de discutir a opressão da raça dentro de seu próprio espaço social, onde as relações de poder e violência acabam interferindo no comportamento e no instinto, “Moonlight: Sob a Luz do Luar” discute sexualidade de forma diferente do que se é comum no cinema americano mais comercial.

Não é uma simples descoberta, mas sim um entendimento da sexualidade que é tratado com naturalidade, o que cabe bem no perfil do protagonista. Ele cresceu sendo apontado como “anormal” por algo que só tem a oportunidade de conhecer com suas experiências de vida, dentro daquele universo predominantemente machista e intolerante. É interessante destacar a discussão da bissexualidade, fora dos extremos da relação gay/hetero que é brevemente mostrada no terceiro ato do filme. Questionar gênero e identidade de forma madura é um acerto do roteiro, que foge da espetacularização.

O roteiro, assinado pelo próprio diretor, se ausenta dos conflitos catárticos da trama, um risco que funciona por se sustentar especialmente nas projeções que o protagonista faz em suas três fases da vida. É como se o longa-metragem fosse um road movie interno, onde Little/Chiron/Black aprende com os cenários por onde transita, sem a necessidade de uma redenção final, já que ele se descobre a cada frame da película.

“Moonlight: Sob a Luz do Luar” é o primeiro grande filme do diretor Barry Jenkins, que faz um trabalho preciso no cargo. A história tem origem no teatro, mas Jenkins aplica toda a sua criatividade para trazer a dinâmica das ações e dos conflitos para a linguagem audiovisual. Parece bobo, mas em um universo tão rico de recursos que o cinema permite, ainda existem realizadores que acham adequado teatralizar demais nas telonas.

Outro concorrente ao Oscar desse ano e que também fala sobre questões raciais, “Um Limite Entre Nós” saiu do teatro para as telonas pelas mãos do ator e diretor Denzel Washington. O problema é que não há interesse em transformar a história em cinema, se restringindo aos exageros textuais da peça original. Com estreia nacional prevista para 2 de março, “Um Limite Entre Nós” se perde em uma encenação pobre que não cabe mais no cinema. Washington some atrás de uma direção que parece não existir, confiando na interpretação do elenco que não basta para transformá-lo em um bom filme.

Acontece o oposto em “Moonlight: Sob a Luz do Luar”. A sensibilidade de Jenkins, ancorado pelos excelentes design de produção e direção de fotografia, transformam o longa em uma experiência cinematográfica completa. Não é apenas mais um filme importante que precisa ser visto pelos cinéfilos, mas também um produto que se constrói pela força da narrativa, onde os movimentos de câmera e o tempo do filme são pensados para fazer com que a obra funcione com precisão.

Aparentemente, “Moonlight: Sob a Luz do Luar” é o único filme que pode destronar o favoritismo na categoria de Melhor Filme de “La La Land – Cantando Estações”, que venceu o prêmio do Sindicato dos Produtores, principal termômetro para o vencedor da categoria de Melhor Filme do Oscar. O romance musical virou um produto de mercado muito maior do que suas qualidades e, apesar da homenagem justa ao gênero, não tem metade da potência da dramaturgia do filme de Jenkins.

Ao lado de “Manchester à Beira-Mar” e “A Chegada”, “Moonlight: Sob a Luz do Luar” completa o trio obrigatório dos filmes da temporada. São as obras com o maior potencial de resistir na história no cinema daqui para frente e que não passam de meros caprichos que a indústria americana adora exaltar. São filmes reais em forma e conteúdo que representam boa parte do que tem sido feito de excelente no cinema contemporâneo.

Publicado originalmente pelo autor no Jornal Diário do Nordeste.

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