Crítica | Barbie (2023), de Greta Gerwig

Vamos direto ao ponto antes de qualquer ressalva: Barbie é exatamente aquilo que deveria ser como obra que se propõe à revisão de discursos estruturais de forma acessível para o grande público. Era de se imaginar que Greta Gerwig, diretora e corroteirista do longa, não aceitasse desenvolver o seu primeiro projeto comercial sem preservar o mínimo de autoralidade enquanto presta serviço à Mattel Films, empresa decidida a se estabelecer no mercado audiovisual e apoiada por um grande estúdio como a Warner Bros.

Some isso ao fato de Barbie ter conseguido a adesão imediata do público desde os primeiros materiais de divulgação, seja pela expectativa de que poderia sair conforme o combinado, seja por um possível tropeço na ainda curta carreira de Gerwig. O convite de atores premiados e carismáticos, como Margot Robbie e Ryan Gosling, só acentuou o poder de fogo da empreitada. Qualquer que fosse o resultado, o engajamento era favorável para conquistar grandes bilheterias sem depender do reforço de críticos especializados, ou seja, nada distante do que os filmes de bonecos super-heróis conseguiram na última década.

Barbie também soube aproveitar esse percurso e foi percebendo onde poderia mexer com o desejo e a curiosidade do espectador. Memes, ações de marketing, criação de subprodutos e trilha sonora com grandes estrelas da música pop infectaram o imaginário das pessoas. O filme já estava destinado a ser um sucesso, como inevitavelmente será. Ao alcançar milhares de pessoas pelo mundo, o longa-metragem levará, por meio de um humor quase sempre inspirado (três piadas específicas são excelentes), um emaranhado de discursos empoderados diante de uma sociedade patriarcal que se esfarela cada vez mais com os movimentos de emancipação.

O roteiro de Gerwig e Noah Baumbach segue fielmente um checklist básico de todas as pautas (e deboches) que podem ser inseridas no decorrer das quase duas horas de projeção. Em alguns momentos, chega a ser previsível que tal assunto será evocado pelas personagens, principalmente para quem já tem familiaridade com o campo teórico e/ou simbólico que existe entre os feminismos e o patriarcado. Para os iniciantes, também é um prato cheio a ser degustado. A partir do imaginário criado da boneca que representa o padrão ideal de beleza e perfeição, o texto vai se desconstruindo e acenando para os passos que a Mattel precisou dar nos últimos anos para ser menos excludente. Robbie e Gosling se divertem em cena, mesmo com os altos e baixos de uma trama muito demorada, e o restante do elenco está à vontade, com destaque para a sempre ótima America Ferrera como um dos elos fortes entre o mundo dos humanos e o dos brinquedos.

A Barbie Estereotipada continua a mesma, mas outros perfis foram inseridos nesse universo porque ela não dava mais conta da quantidade de outros corpos que ocupam o cotidiano – e tantos outros ainda não foram contemplados nem pelo filme, nem pela linha de brinquedos, nem pelo convívio social.  Os bonecos masculinos, que são insistentemente questionados pelo roteiro do filme, em especial entre os dois últimos atos, permaneceram em suas zonas terciárias de relevância, como alívios cômicos e devaneios camp. E se você, caro homem cis heterossexual, não se sentiu representado aqui, o roteiro deu certo.

Assim, chegamos às ressalvas e elas são breves para evitar detalhes cambaleantes da trama. Gerwig e Baumbach são autorizados pela Mattel a criticar com clareza o processo que elevou a figura de Barbie – a boneca, não o filme – ao padrão de mulher perfeita, como um exercício de autoironia. Dessa forma, a Mattel assume a mea culpa de ter estimulado, por gerações e gerações, o consumo de ideais que não representavam uma parcela significativa de crianças e atribui ao cinema a função temporária de reparação. A empresa se coloca no mesmo patamar do homem mediano que se reconhece como vítima do patriarcado, que acordou tarde demais para novos caminhos e se obrigou a seguir um fluxo de debate para derrubar a estrutura.

Ao pedir desculpas bem-humoradas, a Mattel não deixa de, voluntariamente ou não, implorar que os seus produtos continuem sendo consumidos porque agora estão mais inclusivos e isso é o bastante por enquanto. Em tempos de crise econômica, estimular um investimento alto em uma boneca entre dezenas de modelos diferentes é o exercício capitalista em sua forma mais voraz. É a dinâmica do mercado: pode mexer com a minha reputação, contanto que se convençam da minha idoneidade e encham meus bolsos.

Não sendo este um filme infantil, cabe aos adultos nostálgicos acatarem ou não o acordo intelectual e financeiro de paz. A pouca criatividade do desenho de produção mal arranha o orçamento megalomaníaco de US$ 145 milhões, mas deve satisfazer por cumprir a função básica de um filme comercial engraçadinho que faz mais pelo mundo do que muito personagem de collant vomitando virilidade e frases de efeito.

 

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Diego Benevides é jornalista, pesquisador, crítico e curador de cinema. Membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) e sócio-fundador da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). Doutorando e Mestre em Comunicação pelo Instituto de Cultura e Arte (ICA) da Universidade Federal do Ceará (PPGCOM/UFC), com estudos sobre cinema brasileiro na linha de pesquisa Fotografia e Audiovisual. Saiba mais.

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