Crítica | A Felicidade das Coisas (2021), de Thais Fujinaga

A atual situação pandêmica propôs outras experiências de cinema que afetaram a forma como se realiza, consome e distribui obras audiovisuais. A hibridização dos festivais, como a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, certamente possibilita o acesso à programação a públicos de outras regiões do país, ainda que a tela grande faça falta no processo de apreciação. Não só ela, mas tudo que envolve a vivência em um festival. O estar perto; ou o estar com.

Não é nada exatamente novo em tempos de streaming, mas tentamos nos adaptar a ver filmes nesse formato aparentemente reduzido, em equipamentos que muitas vezes parecem desobedecer às propostas estéticas dos realizadores. Dentro do que se tem, há também a tentativa de penetrar nesses filmes independentemente de tais circunstâncias, um esforço profundo de observação e respeito do que se procura ao assistir a um filme para apontar o destaque da programação, como fizemos no júri Abraccine da Mostra SP.

Do recorte com pouco mais de uma dezena de obras consideradas, o encontro com A Felicidade das Coisas veio para articular uma série de gestos que nos fazem refletir sobre um Brasil em ruínas que tenta existir diante do fim de mundo que se anuncia, mas não se concretiza. O primeiro longa-metragem de Thais Fujinaga, responsável pelos belos curtas L (2011) e Os Irmãos Mai (2013), dialoga com o interesse recorrente do cinema brasileiro em expor as feridas das transformações sociais e dos elos existenciais, nesse caso de uma família de classe média abalada pelo desmonte econômico e político do país.

Focado sobretudo nas personagens femininas, A Felicidade das Coisas carrega um título amargo ao dar conta do que acontece em cena, mas ao mesmo tempo traz esperança de um futuro melhor. Paula, interpretada com vigor por Patricia Saravy, deseja construir uma piscina para os últimos dias de férias de seus filhos. O que parece ser um privilégio é, na verdade, uma tentativa de dar o mínimo de dignidade para aquelas crianças ou de criar uma fantasia menos dolorosa em cima da realidade dura que a família enfrenta.

A sensibilidade de Fujinaga é constante do primeiro ao último frame ao elaborar a degradação das circunstâncias vividas principalmente por Paula, que está grávida e ainda precisa lidar com as expectativas dos filhos que estão em etapas de desenvolvimento e descobertas diferentes. Ao mesmo tempo que o nascimento aponta para a renovação, ele também se contrapõe à realidade de Paula, desassistida pelo pai das crianças e auxiliada como pode pela mãe, vivida por Magali Biff. Outros momentos difíceis chegam e resta saber quais vias serão possíveis para essa família.

Fujinaga trata bem os personagens, mesmo diante de uma realidade tão catastrófica. Há uma crença na força da sobrevivência dessas mulheres e em uma felicidade imaginada do amanhã. A diretora converte a dureza não só em sensibilidade, mas também em uma generosidade profunda que podem fazer do espectador um cúmplice das personagens. O roteiro evita o excesso melodramático para navegar na melancolia e na esperança de que tal situação temporária pode até durar muito, mas que novos dias virão e cada um deles pode ser diferente.

Texto originalmente publicado pelo autor no site da Abraccine durante a 45ª Mostra de São Paulo.

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