48ª Mostra SP | Os fantasmas de César Augusto Acevedo em Horizonte (2024)

Horizonte (2024), dirigido por César Augusto Acevedo, é um dos destaques da 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

[EM ATUALIZAÇÃO]

 

Um dos grandes destaques da 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo é o drama Horizonte (2024), coprodução entre Colômbia, França, Luxemburgo, Chile e Alemanha dirigida pelo colombiano César Augusto Acevedo. A película, que foi exibida no último Festival de Cinema de Toronto, acompanha uma mãe e um filho que iniciam uma jornada em busca do patriarca da família. A jornada fantasmagórica revela, aos poucos, traumas do passado em um cenário de guerra, violência, culpa e horror.

Acompanhe o bate-papo que tivemos com o diretor durante a Mostra SP (em espanhol, traduzido livremente para o português):

Diretor César Augusto Acevedo

DB: Horizonte é um projeto grandioso que reflete as violências da guerra a partir de uma relação fantasmagórica existencialista entre uma mãe e um filho que peregrinam pelas paisagens. Qual foi a gênese desse roteiro e como ele foi articulado para chegar a um tom tão denso

CAA: Sinto que vem de uma desesperança e uma culpa de viver na Colômbia porque de certa forma sinto que somos uma sociedade que se tornou insensível à violência por causa da nossa história, e às vezes perdemos o sentido da vida. E isso sempre pesou muito para mim. Teve uma coisa muito particular que em 2016, na Colômbia, aconteceu o plebiscito do processo de paz e eles pediram para pessoas votarem se queriam continuar na guerra ou não. Foi um momento de muita esperança e de finalmente sentir uma mudança profunda na nossa sociedade, e no final ganhou o sim como se quisessem continuar na guerra. Isso foi como um golpe muito forte para todos nós, que me veio como uma pergunta que realmente acontece conosco, não porque ainda estivéssemos tão cegos, mas houve algo muito particular naquela votação que foi uma diferença de 51% contra 49% e o fato de terem votado sim principalmente nas cidades onde o conflito de guerra foi vivido. Então foi isso que me levou a me questionar um pouco. É um filme que nos leva a compreender, acima de tudo, o que nos acontece, e qual pode ser o verdadeiro valor da vida num mundo, em um país, onde tudo parece perdido. Bem, é como uma espécie de mito dos mortos porque a Colômbia é um país onde há mais de 8 milhões de vítimas e esse número continua a crescer e eu queria fazer um filme que não falasse dessas pessoas simplesmente como um número ou uma estatística, mas, sim, como seres humanos como nós, com sonhos, com famílias, como se minha intenção inicial não fosse ressuscitar os mortos, mas falar sobre os vivos.

DB: A morte e os fantasmas estão em um percurso de eterno retorno. Vemos um ciclo da vida a partir desses traumas da Colômbia, de guerra e das políticas, que também são universais. É um roteiro misterioso, que demanda uma leitura atenta e que vai ganhando forma. As imagens também ajudam a montar esse universo quase distópico. Como foi o pensamento em torno do tratamento estético do filme?

CAA: A princípio, começa pelo texto, porque obviamente foi um desafio enorme fazer esse filme e falar daquele mundo dos mortos, para mim, foi como tentar construir aquele mito com um rigor que fosse lógico para o espectador ou para quem poderia acreditar nessas regras para construir aquele universo único e particular, e, sobretudo, levando em conta que eu não queria fazer um inventário de erros, nem fazer um filme que o espectador sentisse como uma fantasia. O que eu queria antes era mesmo pedir para o espectador para participar dessa jornada e refletir sobre ela. Não há medo da morte, então o que resta, certo? E tudo já aconteceu, certo? Portanto, há essa desesperança e houve algumas ideias cruciais no texto, como a incerteza de que ninguém sabe para onde ir, ninguém sabe o que fazer, então como se perdoar ou como mudar e ir por outro lado? Bom, também teve algo muito forte na construção de um tempo subjetivo que está ligado à memória, às lembranças como tudo que aconteceu e, por isso, a partir do texto, foi uma tentativa de construir esse tempo como seu objetivo de passado e presente existindo no mesmo lugar, Então, à medida que isso ganha força, temos o uso de planos-sequências justamente para evitar cortes ou flashbacks e construir realmente aquele tempo vivido.

Poder relacionar aquelas imagens serviu-me mais como recurso à poesia para não compreender este filme de um lado lógico simplesmente racional, mas sobretudo emocionalmente, não porque o filme não procura somente dar uma visão política, social, econômica, mas também falar do que nos aconteceu de um lugar mais moral, metafísico e espiritual porque a guerra não é só sobre o corpo, mas também sobre o espírito. Então, levando isso em conta, trabalhei no texto e a imagem foi muito importante porque realmente, por exemplo, temos a relação com os espaços como algo não apenas físico, mas um espaço emocional e moral. Na primeira parte, há uma separação desses elementos da natureza, pois a vida nos escuta, não há pássaros, não há animais, também tem um vazio, não uma desolação, e à medida que esses personagens se humanizam parece que a vida começa a explodir aos poucos. No meio, quando chegamos ao rio, você sente que o mundo está ganhando força novamente, então foi muito importante ter essa relação entre os personagens, para externalizar essas paixões internas, as dúvidas, aquela incerteza do que estavam vivenciando, mas também se manterem conectados com um mundo que ainda está ali.

Esse mundo começa a ganhar presença e tivemos que pensar em encontrar uma maneira de concretizar a abordagem que eles têm da vida enquanto se humanizam porque no final já é como se eles chegassem ao vazio novamente. O fato de o mundo estar acabando foi algo muito ambicioso, pois temos que destruir o mundo para que eles possam voltar a ser de outro jeito, certo? E a única maneira é nos transformarmos. Eu trabalho sempre com o meu fotógrafo, Mateo Guzmán, e, acima de tudo, quando falo com ele, o que mais me interessa é a emoção dos personagens, não esterilizar esses mundos interiores deles e não apenas como pensar em termos plásticos, estéticos. Eu gosto que a imagem tenha uma força e seja muito expressiva, mas não que seja bonita só por isso, mas porque e acima de tudo é uma forma de dar ao espectador aquela experiência sensorial e emocional que eu quero.

O formato que foi gravado também é para mostrar esses personagens em um mundo muito vasto em que eles não sabem o que fazer com o uso da luz e da cor porque também é algo que acaba sendo muito específico, essas fases que eles vivem naquela escuridão, naquela desconexão com a vida e à medida que avançam. O filme também ganha um tom mais realista de uma certa forma, então foi como, acima de tudo, poder fazer um movimento dos mortos para os vivos para que espectador também sentisse. Acho que, para mim, é bom o filme ser pesado, mas justamente à medida que o espectador também entra naquele lugar  é como se esse mundo não pudesse continuar assim e a gente tem que tentar fazer algo sozinho, mas não sabemos se vai dar certo. O desafio foi ver como relacionar a linguagem cinematográfica com a construção de uma forma poética e mais do que construir ideias, conduzir a emoções.

DB: O filme é deslumbrante e ambicioso visualmente. Por que você decidiu trazer elementos fantásticos para comentar tais questões políticas de forma orgânica?

CAA: Tentei pegar aquela organicidade desse mundo para que não fosse algo simplesmente fictício, e eu sinto que o filme pesa esses elementos fantásticos e realistas, mas tem o realismo como um meio, não como um fim, como elementos alegóricos e de metáforas. Por exemplo, a casa representa o interior de Basílio, que é um personagem cínico e está tentado negar esse mundo que para se libertar. Então, apagando esses rastros, ele escondeu todas as suas roupas, escondeu as armas, prendeu as pessoas e isso permitiu que ele e sua mãe se libertassem. Encontrar essas alegrias e esses elementos fantásticos para poder representar essas ideias, por exemplo, esta casa. Ele chega a essa floresta onde esses rostos nunca desaparecem, que à primeira vista de sua mãe e de suas vítimas, ele se parece com aquelas vozes que não podem ser silenciadas e estão ali o tempo todo. Então é também o inferno que carrega por dentro. Esses rostos começam a se sobrepor até virar um rosto monstruoso, como se ele não pudesse ver mais. Temos todos esses elementos fantásticos sobretudo neste limbo que é construído. Como diretor, me permiti tentar expressar algumas ideias e em relação a esse mundo interior dos personagens que me permitissem expressar de uma maneira mais contundente através de imagens e dos sons o que você precisa construir para o espectador.

Paulina García e Claudio Cataño protagonizam Horizonte (2024)

(continua…)

Filme visto na programação da 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro/2024.

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