Entrevista | Gabriela Amaral Almeida, diretora de “O Animal Cordial” (2017)

Luciana Paes em O Animal CordialEm “O Animal Cordial”, diretora Gabriela Amaral Almeida usa o horror como espelho de uma sociedade violenta

Um dos nomes mais criativos do cinema brasileiro contemporâneo, Gabriela Amaral Almeida lança nos cinemas “O Animal Cordial”, seu primeiro longa-metragem após uma carreira premiada de curta-metragista. A nova obra segue algumas propostas já familiares da cineasta, utilizando-se do cinema de horror para dialogar com questões sociais.

Na trama, assaltantes invadem um restaurante de classe média de São Paulo. Entre os reféns estão Inácio, o dono do estabelecimento interpretado por Murilo Benício, e a garçonete Sara, vivida por Luciana Paes, parceira de longa data da diretora. Sempre tentando fugir do óbvio, o roteiro, faz com que as escolhas dos personagens sirvam como elemento surpresa.

A entrega do elenco, que ainda inclui nomes como Irandhir Santos, Humberto Carrão e Camila Morgado, garante a boa articulação das tensões, sendo difícil prever quais os limites narrativos e visuais que a trama pretende atingir. A partir do momento que as portas do restaurante se fecham, toda aquela encenação prende a respiração até o último quadro.

“O Animal Cordial” segue a linha criativa de filmes de horror que não se prendem a sustos fáceis e desenrolares banais, preferindo pensar o cinema de gênero de uma forma mais complexa. A produção traz a assinatura de Rodrigo Teixeira, por meio da RT Features, que produziu filmes como “A Bruxa” (2016), de Robert Eggers, e o nacional “Quando Eu Era Vivo” (2014), de Marco Dutra.

o animal cordial gabriela“Geralmente, as questões que me são caras vêm acompanhadas do esboço de algum personagem. É o jeito que eu processo as coisas. Por exemplo: ‘o que uma mãe faria se, aos seis meses de gravidez, sentisse que não quer mais aquele filho?’. A questão (maternidade) vem junto com o personagem (uma mulher no sexto mês de gravidez). A partir daí, eu começo a puxar eventos da situação, até entender bem os sentimentos que cabem nela”, conta a diretora baiana baseada em São Paulo, em entrevista exclusiva para o Caderno 3.

O longa estreou no 21º Fantasia International Film Festival, no Canadá, um dos mais tradicionais festivais dedicados a filmes fantástico, de horror, terror e demais subgêneros, passando por outros eventos importantes, como o Festival Internacional de Cinema do Rio, que premiou Murilo Benicio como Melhor Ator, e o FantasPoa 2018, que premiou Luciana Paes e Gabriela Amaral Almeida como melhor atriz e melhor diretora.

Personagens

Mestre em literatura e cinema de horror, Gabriela traz suas influências do slasher e do gore para abraçar com segurança a violência gráfica. Dono, funcionários e clientes do restaurante parecem estar isolados do mundo, em uma espécie de microcosmo sem lei, bandidos ou mocinhos, vivendo uma situação-limite que testa as condutas de cada um deles. A diretora se interessa por temas como relações de poder, homofobia, racismo e relacionamentos abusivos para falar sobre a decadência da classe média.

“São os personagens, portanto, que pedem os elementos deste ou daquele gênero para que suas histórias venham à tona. O curioso é que quase todos os meus personagens lidam com o medo que sentem de alguma coisa e, consequentemente, suas questões pedem as ferramentas do horror, do terror e do suspense para florescerem”, afirma.

 Ainda que “O Animal Cordial” traga uma proposta de horror, Gabriela não deixa de lado o humor da trama. As escolhas da diretora vêm de longa data, como nos premiados curtas “A Mão que Afaga” (2012) e “Estátua!” (2014), que se utilizam do cômico como oposição bem empregada aos dramas pessoais do personagem.

A obra não busca o riso escrachado, mas sim o humor inteligente. “Para uma história de suspense funcionar, é necessário que haja momentos de alívio entre um embate e outro, entre uma cena tensa e outra. É nesses alívios dramáticos que o humor invade a minha narrativa, e esse humor está sempre ligado ao absurdo e/ou nonsense de simplesmente existir”, aponta a diretora.

A trama se desenrola dentro de um único cenário, cabendo à diretora pensar nas relações geográficas desse restaurante ameaçado por bandidos. Gabriela conta que já escreveu o roteiro pensando nesses espaços e nas possibilidades de imagens que eles renderiam. Tudo foi cenografado em um antigo casarão desocupado, optando por não utilizar uma locação real.

Camila Morgado Animal CordialGabriela destaca o desempenho do diretor de arte Denis Netto e da fotógrafa Bárbara Álvarez, que foram essenciais para a criação dessa atmosfera particular aproveitada pelo longa. “A forma como a cozinha se relaciona visualmente com o salão do restaurante, servindo como uma tela do servilismo que caracteriza nossa sociedade; o corredor que liga os espaços e que regula a temperatura de atuações dos personagens, que agem de um jeito nos fundos, de outro no salão; dentre inúmeras outras coisas”.

Metáforas

Ainda que as alegorias de “O Animal Cordial” sejam claras, o que facilita a imersão do público na trama, elas não soam forçadas. Isso porque Gabriela acredita que uma narrativa parte dos espaços internos e insondáveis dos personagens, de um campo das emoções que canaliza o andamento da história.

“A violência urbana, o medo de ser assaltado, morto – tudo isso é informação contextual, já sabida pelos personagens de ‘O Animal Cordial’ e também pelo espectador. Agora, quando os personagens são obrigados a enfrentar o abismo que são eles mesmos, abismo este que nem eles, nem os espectadores sabiam existir, aí temos drama, a essência do funcionamento lúdico de um texto de ficção. Estamos no terreno das emoções, e não das informações. Isso faz toda a diferença”, continua.

Também há em seus filmes um olhar profundo sobre suas atrizes, reafirmando o compromisso da diretora que está sempre interessada em sublinhar a representatividade feminina em seus filmes. “Sou mulher e gostaria de ver um sem fim de histórias que ainda não vi, nas telas, por conta da hegemonia do olhar masculino sobre as questões do universo inteiro. Novas perspectivas são bem-vindas para oxigenar os pontos de vista através dos quais tomamos conhecimento do mundo ao redor”.

Além de “O Animal Cordial” chegando ao circuito, Gabriela já está com seu segundo longa-metragem pronto para estrear no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em setembro deste ano. Ambientado em um bairro proletário de São Paulo, “A Sombra do Pai” conta a história de um pai e uma filha que não conseguem se comunicar. A filha, que é fã de filmes de terror, acredita ter poderes sobrenaturais e ser capaz de trazer sua mãe de volta à vida.

“O que me interessa no gênero é a possibilidade de tornar alegóricos dramas humanos que me são caros. Enquanto houver personagens que sentem medo, na minha imaginação, haverá histórias de horror, sim”, finaliza a diretora.

Texto originalmente publicado pelo autor no Jornal Diário do Nordeste.

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